Captar a identidade dos belgas é, no mínimo, um desafio. Ao contrário de países vizinhos, como França ou Alemanha, estes não têm uma narrativa histórica colectiva vasta. "Sire, il n'y a pas de Belges" foi como o político e autor belga Jules Destrée foi citado pelo escritor holandês Jeroen Brouwers, para o título do seu ensaio sobre a cultura belga, construída sobre uma identidade nacional inexistente.
Terça, Agosto 25. 2015
Não há belgas online
Este parece ser um ponto de partida problemático, quando se pergunta como os belgas lidam com a identidade e a construção da identidade através dos meios de comunicação digital contemporânea, tanto individual como colectivamente. Contudo, o facto de ser tão difícil – se não impossível – captá-la pode oferecer uma perspectiva muito relevante e crucial sobre uma noção igualmente flexível e mesmo volátil, nomeadamente a identidade na nossa era actual das ligações sem fios. Não existe uma identidade nacional belga, pelo que a falta da mesma pode ser o único ângulo relevante para as identidades (nacionais) online em geral. Ou um ponto de partida problemático para uma questão problemática. É isso que admiramos neles.
Fluidez belga
A identidade deve ser encarada como uma construção altamente dinâmica, o que é muitas vezes difícil de compreender no domínio já de si de mudança contínua do "mundo real". Contudo, na Internet, considerando a utilização formal de diferentes perfis, avatares, plataformas de redes sociais ou nomes de login, esta multiplicidade performativa torna-se muito mais clara. Trata-se de uma multiplicidade que também é estimulada pela natureza da literacia dos novos meios de comunicação – onde os meios passivos e privados têm o consumo transformado num comportamento activo e social, com características chave, como jogo, desempenho, apropriação e colectividade. E, mais ainda, quando o simples acto de navegar ou deambular num mundo virtual 2.0 nos obriga a deixar rasto, com um histórico comportamental de gostos, actualizações do estado do nosso perfil, selfies ou utilizações de redes sociais ou dispositivos. Somos nómadas online.
Mas o que podemos dizer sobre esta falta de uma identidade nacional única belga? E de que forma isto se reflecte nas expressões individuais, culturais ou artísticas? E conseguimos encontrá-la ou relacioná-la com práticas online?
Existem muitos artistas interessantes belgas a lidar com a identidade online. Seria algo limitativo dizer que estes reflectem tipicamente a identidade belga. Mas a nitidez poética com que abordam a volatilidade do nosso ego online pode ser constituída ou, pelo menos, inspirada nesta fluidez belga. Num próximo artigo, veremos alguns dos mais exemplares: Lucille Calmel, Marijke De Roover, Dries Depoorter, Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes, Various Artists, Pascalle Baret.
Será definitivamente interessante discutir o seu trabalho ao longo do projecto. Mas, por agora, insisto em não esquecermos a cultura popular, com alguns fenómenos relacionados com as identidades online e a Bélgica.
A língua como expressão da identidade
O país, enquanto construção política artificial a partir do século XIX, é um espaço multilingue com diferentes comunidades com histórias distintas. Não se trata de um não-lugar, mas de um lugar de passagem: um agrupamento (temporário) de comunidades (temporárias) nos cruzamentos geográficos das grandes nações da Europa, e de cidades como Londres, Paris e Amesterdão, culturalmente enriquecido com um fluxo de novas pessoas que chegam e passam, recordando um passado colonial, a migração do final do século XX, com Bruxelas como a capital da Europa, os actuais refugiados, etc. Como tal, é muitas vezes vista como uma cristalização da própria Europa multicultural.
Se existe uma narrativa culturalmente determinante para a história das comunidades belgas é o facto de que estas têm sido definidas por ocupantes estrangeiros na maioria do seu passado: holandeses, franceses, alemães, austríacos e espanhóis. Um argumento (e cliché) muito ouvido é que isto conduziu a uma relação peculiar com o oficialismo, assumindo a forma de uma pseudo-conformidade e um sentido de revolta – sendo pragmático e low-profile. Mas conduziu igualmente a uma cultura florescente e altamente criativa de linguagem nacional. E a linguagem nacional pode ser crucial quando se trata da construção da identidade online.
O melhor exemplo da linguagem nacional como uma expressão da identidade na Internet tem muito a ver com a identidade ou a notada falta desta: os Anonymous e o seu local inicial de nascimento, o fórum 4chan onde ninguém podia iniciar a sessão com um nome de utilizador ou pseudónimo, provou ser o lugar ideal para dar asas a uma linguagem vernacular com uma cultura meme a fluir na Internet.
É um orgulho belga algo irónico, que pode estar relacionado com uma falta de afinidade no estado da sua arquitectura (vernacular) e infame falta de organização do espaço público. A falta de confiança histórica das autoridades (por parte dos belgas) pode ter conduzido a uma expressão não muito franca, mas pragmática, de individualidade e a uma proliferação consequente de banalidade no espaço público. Isto é muito romantizado e, recentemente, deu origem a uma comunidade muito popular no Facebook "Belgian solutions". Poderá notar aqui uma referência implícita ao famoso surrealismo belga. O projecto em curso da artista Karel Verhoeven "Anything can B_a Car" relaciona-se de alguma forma com a poesia da expressão não tão franca da identidade, através de expressões vernaculares.
Radicalização
Embora a identidade belga seja difícil de captar, existem muitos movimentos nacionalistas muito activos na construção das suas próprias formas claras de identificação. Nesse aspecto, o país pode ser encarado como uma nação politicamente dividida, o que nos pode fazer pensar na "cyberbalcanização" ou na existência de "redes fragmentadas".
A fronteira linguística (entre a parte falante de holandês, no Norte, e a que fala francês, no Sul) não é apenas uma realidade política e constitucional, mas também se reflecte nos meios de comunicação tradicional (não existe TV, rádio ou jornal nacionais). E mesmo os contactos de redes sociais organizadas online parecem respeitar essa fronteira (exceptuando, talvez, as redes sociais multilingues online em Bruxelas).
A ciberbalcanização é o campo ideal para o crescimento da radicalização. E não é só o nacionalismo que pode ser visto como radical. Um fenómeno muito complicado na Bélgica é o facto de o país ter per capita os jovens muçulmanos mais radicalizados e extremistas, convertidos em combatentes da Síria. A Internet tem, comprovadamente, uma importância tremenda neste extremismo. Daí o título em hashtag #radicalisme #extremisme # terrorisme do ensaio sobre este tópico, escrito pelo cientista político belga Bilal Benyaich. E isto não só porque este é um recrutador activo, através de propaganda organizada online, mas também porque o salafismo radical se tornou uma verdadeira subcultura ou contracultura, profundamente interligada à cultura jovem urbana, à pressão dos pares, e à música gangsta-rap e correspondentes actividades online, como fóruns e vídeos de música.
Compromisso na era da auto-promoção

Quando pensamos na Bélgica – na verdade, quando pensamos na Europa – não nos devemos esquecer de que existe um grande fluxo de pessoas a quererem ficar cá. Refugiados económicos e políticos de todo o mundo entram no nosso país e continente. Como lidam com as suas identidades digitais? Seria incorrecto não mencionar uma óptima iniciativa da Recyclart (centro de música para a juventude sedeado em Bruxelas). Refugiados do centro federal de asilo belga Klein Kasteeltje/Petit Château foram convidados para a chamada Phonecard Party e foram ajudados pelo DJ a ligarem os seus telemóveis à mesa de mistura para tocar os seus MP3 preferidos guardados nos seus aparelhos; estes ficheiros media digitais são, muitas vezes, das poucas memórias que conseguem trazer na viagem. Eu estive lá e escrevi um blogue sobre este evento notável.
E de futuro? Quando pensamos na identidade relacionada com os meios digitais, existe a noção futurista do pós-humano, ou trans-humano, uma mistura de homem e tecnologia. Frank Theys – enquanto filósofo – realizou um documentário extensivo e desafiante, internacionalmente famoso, composto por três partes, intitulado TechnoCalyps, sobre este tema. E anunciou recentemente estar a trabalhar num novo filme focado na sociedade peer-to-peer, juntamente com o fundador belga da P2P Foundation, Michel Bauwens, altamente inspirado pela comunicação por redes de distribuição, apresentando esta imagem como um futuro modelo para a sociedade. Relacionado com esta espécie de compromisso de cidadãos, seria interessante investigar o que uma sociedade peer-to-peer pode oferecer ao indivíduo: compromisso na era da auto-promoção. A cidade de Kobane conduziu a uma forma diferente de combatentes da Síria e simpatia (académica), numa defesa progressiva ímpar do pluralismo e do cooperativismo. Mas isto pode levar-nos muito longe.
Podemos pensar em muito mais aspectos, quando se trata de elementos que constituem a identidade belga. O multilinguismo pode trazer mais abertura, podendo deixar os belgas menos vulneráveis a redes fragmentadas radicalizantes. Mas nós apenas podemos especular. Como é que os flamengos lidam de forma diferente com selfies de pessoas da Valónia ou de Bruxelas? Isto pode ser respondido pelo projecto SelfieCity de Lev Manovich. E relativamente ao envelhecimento da população? E ao fluxo de expatriados de Bruxelas e redondezas? Ou à falta de confiança das autoridades em relação a uma Internet monopolizada e restrita? Com que marcas de hardware e software nos identificamos? Mais uma vez, estamos a especular.
Fluidez belga
A identidade deve ser encarada como uma construção altamente dinâmica, o que é muitas vezes difícil de compreender no domínio já de si de mudança contínua do "mundo real". Contudo, na Internet, considerando a utilização formal de diferentes perfis, avatares, plataformas de redes sociais ou nomes de login, esta multiplicidade performativa torna-se muito mais clara. Trata-se de uma multiplicidade que também é estimulada pela natureza da literacia dos novos meios de comunicação – onde os meios passivos e privados têm o consumo transformado num comportamento activo e social, com características chave, como jogo, desempenho, apropriação e colectividade. E, mais ainda, quando o simples acto de navegar ou deambular num mundo virtual 2.0 nos obriga a deixar rasto, com um histórico comportamental de gostos, actualizações do estado do nosso perfil, selfies ou utilizações de redes sociais ou dispositivos. Somos nómadas online.
Mas o que podemos dizer sobre esta falta de uma identidade nacional única belga? E de que forma isto se reflecte nas expressões individuais, culturais ou artísticas? E conseguimos encontrá-la ou relacioná-la com práticas online?
Existem muitos artistas interessantes belgas a lidar com a identidade online. Seria algo limitativo dizer que estes reflectem tipicamente a identidade belga. Mas a nitidez poética com que abordam a volatilidade do nosso ego online pode ser constituída ou, pelo menos, inspirada nesta fluidez belga. Num próximo artigo, veremos alguns dos mais exemplares: Lucille Calmel, Marijke De Roover, Dries Depoorter, Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes, Various Artists, Pascalle Baret.
Será definitivamente interessante discutir o seu trabalho ao longo do projecto. Mas, por agora, insisto em não esquecermos a cultura popular, com alguns fenómenos relacionados com as identidades online e a Bélgica.
A língua como expressão da identidade
O país, enquanto construção política artificial a partir do século XIX, é um espaço multilingue com diferentes comunidades com histórias distintas. Não se trata de um não-lugar, mas de um lugar de passagem: um agrupamento (temporário) de comunidades (temporárias) nos cruzamentos geográficos das grandes nações da Europa, e de cidades como Londres, Paris e Amesterdão, culturalmente enriquecido com um fluxo de novas pessoas que chegam e passam, recordando um passado colonial, a migração do final do século XX, com Bruxelas como a capital da Europa, os actuais refugiados, etc. Como tal, é muitas vezes vista como uma cristalização da própria Europa multicultural.
Se existe uma narrativa culturalmente determinante para a história das comunidades belgas é o facto de que estas têm sido definidas por ocupantes estrangeiros na maioria do seu passado: holandeses, franceses, alemães, austríacos e espanhóis. Um argumento (e cliché) muito ouvido é que isto conduziu a uma relação peculiar com o oficialismo, assumindo a forma de uma pseudo-conformidade e um sentido de revolta – sendo pragmático e low-profile. Mas conduziu igualmente a uma cultura florescente e altamente criativa de linguagem nacional. E a linguagem nacional pode ser crucial quando se trata da construção da identidade online.
O melhor exemplo da linguagem nacional como uma expressão da identidade na Internet tem muito a ver com a identidade ou a notada falta desta: os Anonymous e o seu local inicial de nascimento, o fórum 4chan onde ninguém podia iniciar a sessão com um nome de utilizador ou pseudónimo, provou ser o lugar ideal para dar asas a uma linguagem vernacular com uma cultura meme a fluir na Internet.
É um orgulho belga algo irónico, que pode estar relacionado com uma falta de afinidade no estado da sua arquitectura (vernacular) e infame falta de organização do espaço público. A falta de confiança histórica das autoridades (por parte dos belgas) pode ter conduzido a uma expressão não muito franca, mas pragmática, de individualidade e a uma proliferação consequente de banalidade no espaço público. Isto é muito romantizado e, recentemente, deu origem a uma comunidade muito popular no Facebook "Belgian solutions". Poderá notar aqui uma referência implícita ao famoso surrealismo belga. O projecto em curso da artista Karel Verhoeven "Anything can B_a Car" relaciona-se de alguma forma com a poesia da expressão não tão franca da identidade, através de expressões vernaculares.
Radicalização
Embora a identidade belga seja difícil de captar, existem muitos movimentos nacionalistas muito activos na construção das suas próprias formas claras de identificação. Nesse aspecto, o país pode ser encarado como uma nação politicamente dividida, o que nos pode fazer pensar na "cyberbalcanização" ou na existência de "redes fragmentadas".
A fronteira linguística (entre a parte falante de holandês, no Norte, e a que fala francês, no Sul) não é apenas uma realidade política e constitucional, mas também se reflecte nos meios de comunicação tradicional (não existe TV, rádio ou jornal nacionais). E mesmo os contactos de redes sociais organizadas online parecem respeitar essa fronteira (exceptuando, talvez, as redes sociais multilingues online em Bruxelas).
A ciberbalcanização é o campo ideal para o crescimento da radicalização. E não é só o nacionalismo que pode ser visto como radical. Um fenómeno muito complicado na Bélgica é o facto de o país ter per capita os jovens muçulmanos mais radicalizados e extremistas, convertidos em combatentes da Síria. A Internet tem, comprovadamente, uma importância tremenda neste extremismo. Daí o título em hashtag #radicalisme #extremisme # terrorisme do ensaio sobre este tópico, escrito pelo cientista político belga Bilal Benyaich. E isto não só porque este é um recrutador activo, através de propaganda organizada online, mas também porque o salafismo radical se tornou uma verdadeira subcultura ou contracultura, profundamente interligada à cultura jovem urbana, à pressão dos pares, e à música gangsta-rap e correspondentes actividades online, como fóruns e vídeos de música.
Compromisso na era da auto-promoção

© Phonecard Party
Quando pensamos na Bélgica – na verdade, quando pensamos na Europa – não nos devemos esquecer de que existe um grande fluxo de pessoas a quererem ficar cá. Refugiados económicos e políticos de todo o mundo entram no nosso país e continente. Como lidam com as suas identidades digitais? Seria incorrecto não mencionar uma óptima iniciativa da Recyclart (centro de música para a juventude sedeado em Bruxelas). Refugiados do centro federal de asilo belga Klein Kasteeltje/Petit Château foram convidados para a chamada Phonecard Party e foram ajudados pelo DJ a ligarem os seus telemóveis à mesa de mistura para tocar os seus MP3 preferidos guardados nos seus aparelhos; estes ficheiros media digitais são, muitas vezes, das poucas memórias que conseguem trazer na viagem. Eu estive lá e escrevi um blogue sobre este evento notável.
E de futuro? Quando pensamos na identidade relacionada com os meios digitais, existe a noção futurista do pós-humano, ou trans-humano, uma mistura de homem e tecnologia. Frank Theys – enquanto filósofo – realizou um documentário extensivo e desafiante, internacionalmente famoso, composto por três partes, intitulado TechnoCalyps, sobre este tema. E anunciou recentemente estar a trabalhar num novo filme focado na sociedade peer-to-peer, juntamente com o fundador belga da P2P Foundation, Michel Bauwens, altamente inspirado pela comunicação por redes de distribuição, apresentando esta imagem como um futuro modelo para a sociedade. Relacionado com esta espécie de compromisso de cidadãos, seria interessante investigar o que uma sociedade peer-to-peer pode oferecer ao indivíduo: compromisso na era da auto-promoção. A cidade de Kobane conduziu a uma forma diferente de combatentes da Síria e simpatia (académica), numa defesa progressiva ímpar do pluralismo e do cooperativismo. Mas isto pode levar-nos muito longe.
Podemos pensar em muito mais aspectos, quando se trata de elementos que constituem a identidade belga. O multilinguismo pode trazer mais abertura, podendo deixar os belgas menos vulneráveis a redes fragmentadas radicalizantes. Mas nós apenas podemos especular. Como é que os flamengos lidam de forma diferente com selfies de pessoas da Valónia ou de Bruxelas? Isto pode ser respondido pelo projecto SelfieCity de Lev Manovich. E relativamente ao envelhecimento da população? E ao fluxo de expatriados de Bruxelas e redondezas? Ou à falta de confiança das autoridades em relação a uma Internet monopolizada e restrita? Com que marcas de hardware e software nos identificamos? Mais uma vez, estamos a especular.
Publicado por Bram Crevits
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